Em tempos de quarentena tenho a chance de retomar livros que li anos atrás e sempre redescubro pontos interessantes. Um dos que revi por estes dias é “A dimensão oculta”, do antropólogo norte-americano Edward T. Hall (1914-2009), publicado pela Ed. Francisco Alves em 1977. É uma obra interessante para refletirmos sobre o que virá em seguida à atual pandemia.
Hall, da escola culturalista de Franz Boas, interessou-se por estudos transculturais, tendo se detido em analisar a apropriação dos espaços pessoais e sociais em diferentes culturas. Desenvolveu a propósito uma nova área de estudos que chamou de Proxêmica e que trata da proximidade e distanciamento entre as pessoas em espaços privados e públicos. É esse o tema de “A dimensão oculta”.
Hall primeiro discorre sobre a territorialidade entre os animais; mostra que estes reivindicam e defendem espaços próprios. Com base na etologia, ele explica que os ambientes de excessiva densidade demográfica geram estresse e conflito, principalmente entre os animais com baixo nível de contato entre si, como cavalos, gatos, ratos e falcões.
Cita também vários estudos sobre a “distância de fuga”, que varia de animal para animal. Frente ao perigo, fugir é a resposta básica para garantir a sobrevivência ― e todos os animais (inclusive o homem) dispõem de sofisticados mecanismos, tanto de percepção sensória da presença de uma ameaça quanto de pronta reação de fuga.
Quando discorre sobre a distância entre os seres humanos, o antropólogo explora as aglomerações nas cidades, o planejamento urbano e a arquitetura, refletindo sobre o layout interno das residências, sobre as aglomerações nas cidades e sobre a importância do automóvel.
Hall propõe distinguirmos quatro zonas operacionais de distância que uma pessoa pode manter em relação às outras: as distâncias íntima, pessoal, social e pública.
A distância íntima é de 15 a 45 cm. A essa distância, a pessoa sente claramente a respiração, o odor e o calor corporal da outra pessoa; o olhar perde a nitidez do foco e altura da voz precisa ser baixada para não ferir os ouvidos. As mãos podem tocar o corpo da outra pessoa e o encontro corporal é inconfundível. O desconforto é grande, nessa distância, quando a outra pessoa é estranha, como acontece no metrô ou no ônibus: os corpos muito próximos invadem o espaço táctil, térmico e olfativo; e o hálito, o calor e o cheiro exalado pelo corpo do outro podem produzir fortes sentimentos de rejeição.
A distância pessoal vai de 50 a 120 cm. A essa distância a pessoa ainda pode ser alcançada facilmente pelo outro com a mão, mas o desconforto já diminui bastante. As pessoas ainda se sentem ameaçada pelo olhar, mas na maioria das vezes já não sentem o cheiro, o calor e o hálito do outro.
A distância social é de 120 a 350 cm. É a distância aceitável para se comunicar com estranhos, porque a emissão da voz pode se dar em altura e tom normais. A interação pode ser mais formal, as pessoas podem se olhar sem temor de que um dos interlocutores tente dominar o outro. É a essa distância que se negocia ou se conversa socialmente ou sobre trabalho. Nos escritórios, as mesas têm entre si pelo menos essa distância.
Finalmente, a distância pública é a que está acima de 3,5 m. Bem maior, é aquela praticada, até intuitivamente, pelas pessoas públicas em relação aos outros. Essa é a distância prudente, na qual a pessoa já não pode ser alcançada de imediato por um ataque físico por parte do outro ― é a chamada “distância de fuga” do ser humano.
Hall mostra que as culturas diferem bastante entre si, por isso ainda desdobra as distâncias pessoal, social e pública em dois níveis cada: a distância próxima e a distância afastada. Umas poucas culturas toleram a distância pessoal próxima com estranhos, mas a maioria a rejeita, preferindo a distância pessoal afastada. Hall compara, nesse sentido, norte-americanos, alemães, ingleses, franceses, japoneses e árabes.
Um ponto importante na Proxêmica são as percepções sensoriais do corpo do outro na distância íntima, que podem causar repulsa nas pessoas. Pela ordem, causam maior repugnância as sensações olfativas vindas de:
- cheiro dos pés,
- hálito,
- odor corporal,
- odores sexuais,
- perfumes fortes,
- pele e cabelos não lavados.
Quanto mais estranha for a outra pessoa, mais essas sensações tendem a nos afetar. Portanto, a distância íntima só serve mesmo para a proximidade daqueles a quem amamos e em quem confiamos.
O asco, ou nojo, é um sentimento do qual poucos falam, mas acaba sendo valioso nas epidemias: sentir nojo é importante, porque protege os seres humanos de doenças e parasitas, embora afete diretamente as relações humanas. Nosso nojo é elaborado pela evolução cultural, resultando disso a rejeição, pelas pessoas, de praticamente tudo que lembre a natureza animal do homem, em especial as secreções corporais (suor, sangue, fezes, urina, vômito, saliva, esperma, secreções nasais). O nojo é um sentimento que serve de parâmetro para medir nossa adesão aos hábitos de higiene, embora algumas pessoas sintam nojo em nível exagerado, podendo chegar até a ser diagnosticadas com TOC. Alguns estudos também sugerem que as pessoas politicamente conservadoras são mais inclinadas a ter nojo do que as liberais; e que, frequentemente, as pessoas misturam sentimento com valor, julgando imoral aquilo que lhes dá nojo.
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Quando a curva da contaminação do coronavírus baixar, dentro de algumas semanas, certamente ainda não teremos uma vacina e, assim, a distância íntima (e mesmo a distância pessoal) entre as pessoas precisará ser mantida nos ambientes públicos, especialmente por quem está no grupo de risco. Em muitos casos será difícil ficar à distância de fuga dos outros, em especial nos transportes públicos. Entretanto, as precauções continuarão sendo necessárias. O perigo está no vírus, é claro; mas, sendo este invisível, a ameaça passa a vir de seu hospedeiro potencial: a pessoa ao lado. Vamos ter de nos adaptar!