Cismogênese é um conceito criado nos anos 1930 pelo antropólogo e linguista britânico Gregory Bateson (1904-1980) (aquele genial criador também do conceito de “duplo vínculo”, que psicanalistas e analistas transacionais tanto estudaram!) para descrever a tendência das pessoas de se definirem em oposição umas às outras. Eis um exemplo dado pelo próprio Bateson:

Imaginemos que duas pessoas entrem numa discussão acerca de uma divergência política. Depois de uma hora de argumentação de parte a parte, é bem provável que ambas já estejam assumindo posições tão intransigentes, que tenham passado a se enxergar em lados totalmente opostos e inconciliáveis, em relação a alguma linha ideológica posta em disputa.

Essas pessoas, diz Bateson, podem até mesmo chegar a adotar posições extremas, que jamais abraçariam em circunstâncias normais – somente para mostrar, uma à outra, com que nível de radicalidade rejeitam os argumentos defendidos pelo oponente.  

Bateson sugere que o fenômeno da cismogênese pode perfeitamente extrapolar o contexto apenas interpessoal, cristalizando-se entre grupos sociais distintos e mesmo se institucionalizando em nível cultural. Ele exemplifica citando as grandes diferenças de formas de ver o mundo, de sentir e de se comportar, dos meninos e das meninas de tribos nativas da Nova Guiné, que estudou.

O antropólogo mostra que, numa mesma comunidade, os membros de cada um dos sexos acabam naturalizando e se apropriando, como sendo legitimamente suas, certas condutas que são, no entanto, radicalmente diferentes daquelas assumidas pelo outro sexo – e isso sem que nunca lhes tenha sido ensinado, em sua aldeia, que os meninos e as meninas devessem agir de modos assim distintos.  

Não é apenas imitando os mais velhos que essas crianças têm essa aprendizagem, conclui Bateson; e sim, sobretudo, por considerarem desagradável, cada qual por seu lado, a forma de se comportar do sexo oposto, que desejam evitar ao máximo.

Essa é uma forma cultural de aprendizagem, aponta o antropólogo britânico, que começa nos meros detalhes, com pequenas diferenças inicialmente adquiridas, mas que vai, imperceptivelmente, escalando, se acentuando, até que, em relativamente pouco tempo, as mulheres passam a se considerar tudo aquilo que os homens não são – e vice-versa!

Argumenta outro antropólogo, o norte-americano David Graeber (1961-2020) que esse processo que Bateson descreve como sendo psicológico e cultural pode também acontecer em nível social ainda mais largo, projetado na própria sociedade ampla como um todo e chegando a ter contornos políticos bastante sérios.

Numa sociedade como a nossa, frequentemente as pessoas passam mesmo a se definir pelo contraste com outras pessoas cuja conduta observam – ainda mais considerando a alta velocidade e a incrível capacidade de disseminação que as redes sociais hoje oferecem a quem deseja espalhar suas ideias – lúcidas ou tresloucadas.

Graeber mostra, por exemplo, que, expostos aos comportamentos dos moradores da zona rural, aqueles que vivem nas grandes cidades acabam, inconscientemente, se aferrando ainda mais aos seus hábitos urbanos; ou que indivíduos deseducados, grosseiros e agressivos acabam se tornando ainda mais bárbaros, quando têm a oportunidade de se compara àqueles que desprezam como sendo meros “mauricinhos” e “dondocas”.

Graeber é coautor, com o arqueólogo britânico e professor do University College of London, David Wengrow (nascido em 1972) de um livro muito interessante: “O despertar de tudo – Uma nova história da humanidade” (São Paulo, Companhia das Letras, 2022, 700 págs., tradução de Denise Bottmann e Claudio Marcondes). Nessa obra, os dois acadêmicos reveem a história humana a partir de um fio condutor inusitado: a visão dos povos originários de várias regiões do globo, contraposta ao tradicional ponto de vista europeu.  

E ali, entre outros conceitos, Graeber e Wengrow pensam nas sociedades civilizadas ou ágrafas, modernas ou antigas, também sob a lente da cismogênese de Bateson – mostrando que o modo como os europeus aprenderam a encarar o desenvolvimento dos povos e o processo civilizador ainda mais se europeíza, quando confrontado com outras possibilidades interpretativas que possam vir dos povos locais colonizados.

Como outro grande exemplo que dão desse fenômeno, os autores analisam a relação iterativa entre as antigas cidades-Estados gregas, mostrando como, no século 5º. a. C., Atenas e Esparta se nutriam, em suas diferenças, justamente do espelhamento que cada uma delas fazia de si mesma, ao se projetar na outra. Nesse exemplo eles citam, aliás, outro antropólogo muito conhecido e estudado nos cursos de antropologia, o norte-americano Marshall Sahlins (1930-2021), que comenta, acerca do caso das cidades gregas: 

“Dinamicamente interligadas, eram elas reciprocamente constituídas. Atenas era para Esparta como o mar era para a terra: a cosmopolita para a xenófoba; a comercial para a autárquica; a luxuosa para a frugal; a democrática para a oligárquica; a urbana para a aldeã; a autóctone para a imigrante; a logomaníaca para a lacônica… A enumeração dessas dicotomias possíveis não tem fim – Atenas e Esparta eram simplesmente tipos antitéticos.”

Essa que faz Sahlins é uma feliz imagem do fenômeno da cismogênese, que Graeber e Wengrow habilmente capturaram para ser citada como exemplo em seu livro. Mas, Sahlins é autor de outros relatos mais, sobre casos de cismogênese. Um dos mais incríveis é seu relato, em “Ilhas de História” (Rio de Janeiro, Zahar, 1990, 252 págs., tradução de Barbara Sette) sobre como as mulheres nativas do Havaí foram, em suas canoas, cantando, até os barcos do Capitão Cook fundeados na baía, para se oferecerem sexualmente aos marinheiros ingleses, na suposição de que os visitantes eram divindades que chegavam, para cumprir o que determinava o culto ao deus nativo Lono.

Vistas pelo fenômeno da cismogênese, entretanto, o que essas mulheres estavam fazendo era apenas aferrar-se às suas crenças míticas. Enquanto isso, os atônitos marujos ingleses, aferrados à sua própria maneira de enxergar a relação entre homens e mulheres, não podiam acreditar que uma leva de putas tão inacreditavelmente lindas subia ao convés para recepcioná-los com selvagens surubas, prazer tão ansiado quanto, nesse momento, adiado por tantos e tantos meses!

E tudo não passava de cismogênese em plena vigência! “Cada sociedade cria uma imagem especular da outra”, dizem Graeber e Wengrow em seu livro: “Cada qual converte a outra num alter-ego incontornável”.

Esses exemplos nos dão bom material para refletir por que seria que, no momento presente, aqui no nosso Brasil, tanta gente que sempre nos pareceu “normal” chora e se morde à entrada de quartéis militares, ou reza junto a pneus que ardem em chamas nas estradas gritando “Fomos roubados!”, “Fraude!”, enquanto outros, não mais do que alguns meses atrás, saíam, por sua vez, pelas ruas, gritando: “Foi golpe! Foi golpe!” É cismogênese na veia!