(Atenção: Spoilers à vista para o filme “Parasita”, de Bong Joon Ho)

Fui assistir a “Parasita”, o ganhador do Oscar e, repetindo as palavras ditas por um critico de cinema sobre o “Coringa”, penso que foi o melhor filme muito desagradável que vi ultimamente.

“Parasita” é, literalmente, uma história sobre a desigualdade; e alerta para o gravíssimo fato de que o abismo entre ricos e pobres já assumiu proporções alarmantes no mundo. Nas sociedades em geral, os “have” e os “have not” encontram-se, em geral, a apenas um passo de distância entre si. E, enquanto odeiam, invejam e emulam (tudo ao mesmo tempo) os que têm posses, aqueles que nada têm, mesmo interagindo com eles, permanecem invisíveis aos olhos dos primeiros!

Na ausência de qualquer programa sério de redistribuição de renda, os que vivem na penúria ficam recorrendo a artifícios primários, gambiarras e quebra-galhos para capturar e aproveitar as sobras desprezadas pelos que têm recursos. (A cena inicial em que a família pobre fica tentando achar algum ponto junto ao teto, no precaríssimo porão em que vive, para conseguir um sinal de wifi e poder usar o celular, é tragicômica!)

Os expedientes delituosos achados pela família pobre para usufruir das migalhas atiradas fora pelos ricos são acabrunhantes: eles tentam o tempo todo enganar os patrões, parasitando-os, daí o nome do filme (muito embora também os patrões parasitem os empregados, ou seja, eles são parasitas uns dos outros).

Foucault afirmou certa vez (creio que em “Vigiar e punir” – cito de memória) que a prisão seria uma instituição importante na sociedade, já que poucos outros sinais ajudariam a realmente estabelecer uma distinção entre os delinquentes e os que são “apenas” pobres. Mas, a julgar pelo que vemos em “Parasita”, a delinquência parece ter se tornado apenas um recurso a mais, a ser normalmente empregado por quem nada tem, na tentativa de arrancar alguma coisinha daqueles que têm muito.

O filme é propositalmente ambíguo acerca dessa questão tipo “o-ovo-ou-a-galinha”, que propõe: seria a marginalidade de fato um produto da criminalidade? Ou, ao contrário, a criminalidade é que decorreria, inevitavelmente, da marginalidade?

Entretanto, na metade do filme, quando o espectador acha que já formou uma ideia do que o diretor quereria lhe comunicar com sua história, eis que Bong Joon-Ho dá-lhe uma monumental puxada de tapete, como que dizendo: “Espere, você ainda não viu nada!”

E constatamos, então, que nada existe no mundo que esteja muito ruim (nem a miséria em que aqueles infelizes se encontram) que não possa ficar ainda pior!

Como acontece com aquelas antigas cidades que ao longo dos séculos foram sendo construídas umas sobre as outras (Bizâncio, sobre esta Constantinopla e sobre esta Istambul, por exemplo) também a miséria pode ser categorizada assim, em níveis ou camadas, ficando a miséria mais cruenta embaixo de tudo, oculta por um nível um pouco mais “palatável” de miséria, e só aparecendo ocasionalmente como uma assombração (no filme, o ingênuo Da-song, filho pré-adolescente do casal rico, ainda está traumatizado por ter visto uma vez o fantasma).

O diretor do filme não apresenta soluções: apenas nos lança o problema e sai para o abraço, aplaudidíssimo na cerimônia do Oscar. Enquanto isso, no escuro do cinema, aqueles que permaneceram na sessão até o final (alguns não aguentaram o tranco!) engolem em seco e descem lentamente os degraus para a porta imaginando como é que a humanidade vai se sair dessa…

Um pouco paradoxalmente, o filme não mostra famílias desagregadas, mas sim unidas – tanto a dos ricos quanto as dos pobres. Em ambas, os membros parecem solidários entre si e desejosos de proporcionar bem-estar uns aos outros. As mazelas do mundo não parecem ter contaminado a vida familiar.

Li em algum lugar que, na Coreia, a família é o centro de uma sociedade altamente tradicional; e que, nela, as refeições em família são sagradas, com os membros comendo juntos, em pratos que são compartilhados – assim como são grandes os cuidados para com a os filhos e sua educação. Talvez seja isso que subjacentemente aparece também nesse filme.

De quebra, uma porção de objetos simbólicos, presentes no cenário, denunciam a temática central do filme. O primeiro grande símbolo é o mundo mostrado em três emblemáticos andares: lá em cima, os ricos; lá embaixo, os pobres; e lá no escuro do tenebroso bunker-porão herdado da Guerra da Coreia, o mais miserável dos miseráveis, já totalmente dado por perdido (um “Homo sacer”, no conceito de Giorgio Agamben): aquele que já morreu e não sabe.

Associadas aos três mundos veem-se as escadas, em si mesmas também um personagem: a casa dos ricos, projetada pelo famoso arquiteto Namgoong, é plana, tem no máximo um degrau de um cômodo a outro. Mas, dela para o porão oculto, ou dela para o ambiente em que chafurdam os pobres, são intermináveis as escadarias, estas últimas armadas junto a imensos paredões.

Outro personagem é a tecnologia, privilégio dos ricos: o chefe da família rica é um gênio do mundo digital, e é deste que extrai sua fortuna. Os pobres, no máximo, são usuários de celulares sem terem como pagar o acesso. E, ironicamente, para poder se comunicar precária e secretamente entre si, usam o… Código Morse, símbolo por excelência de tecnologia ultrapassada.

E há os outros objetos simbólicos: a chuva torrencial, que em nada afeta os ricos, mas traz para dentro do porão dos pobres o esgoto a céu aberto da área inundada. Há também os insetos; o bêbado urinando na janela…; e a pedra da sorte, que o jovem Ki-woo, tendo que acreditar em alguma coisa, acha que irá mudar sua vida. Mas, é a pedra que, por sinal, acaba lhe arrebentando a cabeça! Enfim, os símbolos são muitos – e falam por si.

(Uma recomendação final: veja o filme legendado. A língua coreana (como a chinesa) é pródiga em entonações e as falas dos atores estão repletas de finaizinhos sonoros puxando para a exclamação (um pouco como costumam falar os gaúchos da fronteira, aliás). Isso confere aos diálogos um tom de permanente surpresa, que acaba impregnando o espectador. Em dado momento, percebi que era um pouco efeito disso o fato de eu estar me sentindo, ao ver o filme, como se estivesse o tempo todo esperando um novo acontecimento. É bem subliminar.)