Estou lendo “Escravidão (vol.1)”, de Laurentino Gomes e estou impressionado com as revelações que o autor nos traz! É um estudo histórico de altíssima qualidade, que nos obriga a reexaminar tudo que sabíamos sobre o trabalho escravo no Brasil nos tempos da colônia e do império; e mais: a rever também tudo que sempre pensávamos saber sobre a África, além de nossos conceitos e ideias sobre temas tais como: as relações de emprego, a desigualdade social, a pobreza, o preconceito de cor e outros mais. Recomendo enfaticamente!
Mas, outra grande surpresa para mim é a lição que Laurentino oferece aos seus leitores sobre ecossistemas de negócios (um tema atualíssimo nesta “era do empreendedorismo”), quando discorre, no capítulo 6, sobre as grandes navegações dos portugueses em fins do século 15. Vou tentar resumir:
Os grandes negócios possíveis na época eram muitos, e fortemente ligados entre si:
- No interior da África, em muitos pontos da costa ou próximo, havia empresários locais que se dedicavam à captura e à oferta de escravos aos europeus.
- Entre os europeus, por sua vez, havia navegadores que possuíam suas caravelas e as usavam, bem como aqueles que as arrendavam a outros navegadores, para o transporte, para a Europa ou para as colônias de além-mar, dos escravos capturados; e, de volta à África, para o transporte de munições (e, frequentemente, também de indígenas escravizados).
- Nas colônias (no Brasil em especial) havia donos de terras e de engenhos, que usavam a mão de obra escrava na lavoura e, mais tarde, na mineração.
- Paralelamente, entravam na equação também empresários do Oriente, produtores, vendedores e transportadores de especiarias (cravo, canela, noz-moscada, pimenta, gengibre, almíscar, sândalo), além daqueles que dedicavam a produzir, comercializar e/ou transportar sedas e porcelanas, produtos que igualmente interessavam aos portugueses, ingleses, holandeses e outros europeus.
- Havia também os banqueiros que financiavam essas operações, em especial sediados em Veneza e outros Estados da Península Itálica, que ganhavam muito dinheiro viabilizando financeiramente as atividades dos europeus.
- Muitos desses banqueiros – e também governantes de outros Estados e navegantes concorrentes – holandeses, ingleses e outros – tinham espiões em Lisboa, tentando aprender sobre os segredos de navegação que os portugueses pareciam dominar muito mais que qualquer outro povo.
- E havia também os traficantes muçulmanos do Egito e outras regiões do norte da África, ou do Oriente, que também vendiam e compravam mão de obra escrava; além dos mercadores também muçulmanos que dominavam as rotas de comércio entre a Ásia e o Mar Vermelho, ficando com a maior fatia dos lucros no comércio de especiarias.
- E havia também os traficantes europeus de armas (arcabuzes, pólvora, chumbo), que levavam para a África esses produtos altamente valorizados pelos locais na troca por escravos capturados e mantidos cativos…
- Isso sem falar no papel da Igreja, que era um ator econômico e político fundamental na Europa, bem como tinha interesse em evangelizar o gentio na Ásia e na América, o que fazia predominantemente pela ação catequizadora da Ordem dos Jesuítas.
Mas, esse quadro de extrema complexidade ainda não diz tudo: os oceanos eram um outro e complexo desafio. Deixemos que Laurentino Gomes introduza a questão:
… os oceanos são sistemas complexos, pautados por ventos e correntes que agem tanto na superfície como nas profundidades e, muitas vezes, em sentidos opostos, afetados por mudanças das estações, fenômenos geológicos e as fases da Lua, que alteram o sentido e o ímpeto das marés. São como rios invisíveis, que obrigam um navio a seguir numa determinada direção, mesmo contra a vontade e os planos da tripulação. Desse modo, as viagens marítimas, na época das navegações a vela, dependiam de forças que estavam além do controle dos marinheiros. Só com experiência, sorte e disciplina, combinadas com novas tecnologias, seria possível dominá-las.
Laurentino discorre em seguida sobre os dois grandes sistemas de correntes marinhas e ventos no Oceano Atlântico, “funcionando como duas engrenagens de uma máquina colossal rodando em direções opostas”:
- Ao sul do Equador, está a corrente de Benguela, a meio caminho entre a África e o Brasil, girando no sentido anti-horário. Seguindo por ela, um navegante que sai do Rio de Janeiro consegue chegar a Angola e retornar ao Brasil sem grande esforço. Ao norte do Equador, entre a Europa e o Caribe, a corrente gira no sentido horário.
- Além disso, na costa da África, entre Marrocos e Guiné-Bissau, existe a corrente das Canárias, que flui na direção norte-sul. Assim, um navio partindo de Portugal ou Espanha, navegando próximo ao continente, poderia chegar facilmente até o Senegal, mas não conseguiria voltar no sentido contrário.
- Os marinheiros também deviam ficar atentos às estações do ano, que tinham diferentes sistemas de ventos. Isso os obrigava a observar, para navegar com segurança e êxito, um calendário marítimo anual, com “janelas ” que se abriam e fechavam em poucas semanas.
Agora, façamos um exercício puramente intelectual (na verdade, mais uma fantasia!) sobre tudo isso: imagine por um instante que você é um cidadão português nascido em 1550 e que, aos 20 anos de idade, decide empreender, montando uma loja num cantinho de Lisboa, na qual irá vender especiarias (cravo, pimenta, noz-moscada etc.) aos moradores da cidade, bem como ensiná-los a usá-las na conservação dos alimentos. Você sabe quem são seus clientes e conhece bem os produtos e serviços que irá lhes oferecer, mas sabe também que são importados. (Ah, e para ajudá-lo na loja, digamos que você provavelmente irá também precisar da ajuda de alguém.) Digamos ainda que, por um passe de mágica, você acabou de saber de tudo isso que foi enunciado acima.
O que você irá fazer? Por onde irá começar a montar seu negócio – qual será seu primeiro passo? O que irá escrever em sua folha de Canvas?
Querido Marco Antonio
Muito muito obrigada por sua brilhante e informativa análise do livro “Escravidão (vol.1)”, de Laurentino Gomes, com certeza a Idade Média deixou rastros e aprendizados para a vida no planeta e o mundo dos negócios muito além do que imaginamos.
Adorei sua resenha!!
Começando 2020 muito bem!!
Grande admiração pelo seu trabalho e talento desde os anos oitenta!!
Beijo da
Cris Limongi
Marco
Belo texto que mostra história com o tema atual de empreendorismo, aquilo que dizem está na veia dos jovens “Z”.
Não responderei ao seu desafio de como tratar esse negócio da lojinha em Portugal, mas gostaria sim de saber o que essa juventude internectada faria numa situação desta.
Bom ano de 2020 para vc com um grande abraço,
Valter
Interessei-me pelo livro do Laurentino após ler esse seu resumo e tê-lo visto em entrevistas na televisão. Um tour pela velha Itália , por exemplo, dá uma dimensão do que foi a escravidão . Afinal como foi possível construir aqueles gigantescos templos pelas varias cidades que contam a história da Península ?
“Digamos ainda que, por um passe de mágica, você acabou de saber de tudo isso que foi enunciado acima.”
Meu caro amigo Marco,
Essa observação simplesmente faz toda a diferença. Afinal, a descrição resumida que você apresenta acima muito provavelmente descreve práticas que na época eram consideradas “politicamente corretas”.
Será que isso nos induz a refletir um pouco sobre a aceitação pura e simples – sem reservas – do que hoje é definido e aceito (quando não imposto) como politicamente correto? Thought provoking – mais que instigante.
Vou ler o livro sem dúvida – mas estou aqui com minhas reflexões a mil…
Um grande abraço,
Petros
Marco Antônio depois deste comentário, olhei para a prateleira onde tenho o livro escravidão do Laurentino, porém tenho Mais 3 livros dele pra ler, 1808 , 1822 e 1889, qual será o primeiro que lerei ?, Depois do seu artigo acho que começarei pelo Escravidão, obrigado forte abraço