Reexaminando meus guardados, revi um artigo publicado em 1981 na Harvard Business Review, chamado Three Vice-Presidents in Mid-Life, do conhecido consultor Stan Davis e o psiquiatra e professor da UCLA, Roger Gould. Os autores discutem o que chamam de “crise da meia idade” e apresentam casos de executivos que passaram por ela.

Uma crise da meia idade, afirmam eles, é um processo de transição de vida e carreira que se dá em torno dos 45 anos e tende a ser mais agudo ou turbulento do que em outras transições de vida. É, dizem eles, um período “poderoso” de mudanças e distingue-se de outros momentos de transição por solicitar da pessoa que faça um movimento efetivo no sentido de seu autodesenvolvimento: por essa época, muitas vezes, a pessoa precisa deixar de lado seus sonhos da juventude e aceitar que começa a caminhar para o envelhecimento. Ela provavelmente irá fazer, por conseguinte, uma avaliação, um balanço pessoal, que pode resultar numa reorientação que às vezes chega a ser dolorosa. Davis e Gould discutem três casos, escolhidos entre os muitos que recolheram, para exemplificar sua tese:

No primeiro deles, Bob é um executivo que aceita um cargo que não queria, apenas para ser leal à empresa; e, por causa disso, fica quatro anos e meio vivendo num “inferno astral”. Embora se possa dizer que sua crise profissional decorreu de sua própria escolha, o argumento dos autores é que Bob estava num período especialmente propício para entrar nessa crise.

No segundo caso, Larry está bem no trabalho, mas tem um casamento insosso e uma vida familiar nem um pouco motivadora, o que o leva a mergulhar no trabalho de um modo não muito salutar. Enquanto o faz, cria para si próprio, como forma de autodefesa, fantasias de que tudo que deseja é ser profissionalmente bem-sucedido.

O terceiro caso é o de Tom, que é divorciado, mas tem muito contato com os filhos; faz um bom trabalho, é aplicado e cumpre seu papel na empresa – até gosta bastante do que faz! -, mas considera a empresa um reduto de pessoas infelizes, que se venderam ao diabo e atuam sem motivação real, só pensando em mais salário e promoção a cargos mais altos. Diferentemente deles, Tom vive no campo, malha muito, gosta de pescar, caçar, acampar e jamais trocaria a vida ao ar livre pela da cidade.

Alguns pontos merecem discussão no texto de Davis e Gould: o primeiro refere-se à questão dos padrões ou contornos típicos de uma “crise da meia idade” – nos exemplos dados pelos autores, não se percebe um claro delineamento dos aspectos que pertencem (diferentemente de outros que não pertençam) a uma “crise da meia idade”: num caso a crise significa detestar seu trabalho; no outro, ser infeliz no casamento; no terceiro, recusar-se a viver uma vida urbana e desprezar o próprio modo de ser da vida na empresa. Onde estão os reais pontos de contato entre esses exemplos de crise?

Outro ponto a questionar é se as crises desse tipo, admitindo-se que existam e sejam “crises”, são especialmente determinantes na vida das pessoas em comparação com aquelas que ocorrem em outras idades. Certamente, as pessoas tendem a tomar consciência, pelos 45 anos de idade, de que é hora de sopesar bem o que fizeram e o que não fizeram, o que irão e o que não irão fazer daí por diante. E certamente isso quer dizer que elas se encontram, nesse caso, num período de transição, que poderia ser visto como uma “crise pessoal”.

Porém, essa crise não parece ser mais aguda do que a que ocorre pelos 15 ou 16 anos, quando o adolescente, com grandes doses de emoção e movido por mudanças corporais importantes, questiona tudo em sua vida (familiar, escolar, afetiva, comunitária) e sonha com mudanças radicais. Ou aquela que acontece aos 65 anos, quando o indivíduo ingressa na chamada “terceira idade” e tende a fazer um sério balanço de sua vida até então, perguntando-se o que fará nos anos que lhe restam, levando em conta a urgência que tem, uma vez que já não serão tantos assim!

Portanto, parece-me que podemos, sim, reconhecer a existência de uma tal “crise da meia idade”, mas talvez ela tenha sido vista como um momento tão especial pelos autores do artigo, apenas porque estes escrevem para executivos, concentrando-se, portanto, nos seus movimentos de vida e no modo como as trajetórias profissionais ocorrem dentro das empresas.

Um terceiro ponto refere-se ao fato de que Davis e Gould falam unicamente de homens (e de homens americanos brancos), ignorando eventuais diferenças de gênero, cultura, etnia e outras. Será que esses autores manteriam sua tese, se tivessem entrevistado mulheres profissionais? Ou gerentes americanos negros? Ou tivessem feito sua pesquisa na China, no Japão ou no Brasil? São questões que ficam sem resposta.

Um quarto ponto importante é que a pesquisa que deu origem ao texto foi realizada em 1981, nos EUA. De lá para cá muitas mudanças importantes aconteceram no ambiente das empresas, entre as quais a hegemonia mundial do capitalismo, a ascensão da China e o decréscimo da importância econômica do Japão, o desenvolvimento do computador pessoal, a internet, o crescimento da automação industrial e das tecnologias da telecomunicação, a globalização, a ascensão dos países emergentes, a autonomização das carreiras profissionais; e, talvez mais importante, tudo isso resultando numa compressão dessas mesmas carreiras nas empresas, pela qual a chegada a posições de liderança e direção se dá mais cedo na vida das pessoas, o tempo de vida útil numa única empresa foi drasticamente encurtado e a expectativa de vida das pessoas espichou significativamente. Nesse quadro tão diferente do de 1981, o que é, de fato, a “meia idade”? Quando ela ocorre na vida das pessoas se o que a caracteriza?

Um quinto e último ponto merece atenção: o método usado na pesquisa de Davis e Gould leva inevitavelmente a dúvidas acerca da veracidade da tese que defendem. Raciocinemos: se partirmos da tese de que “cisnes são brancos”, por exemplo, então iremos descobrir um cisne efetivamente branco aqui, outro ali, outro acolá – e será bastante provável que cheguemos à conclusão de que, realmente, cisnes são brancos e nossa hipótese está confirmada. Somente se, acidentalmente, aparecer algum cisne negro (que existe!) veremos nossa “verdade científica” finalmente refutada.

Igualmente, se partirmos do pressuposto de que existe uma “crise da meia idade”, então ficaremos tentando encontrar essa crise nas declarações de cada executivo de 45 anos ou mais que entrevistemos – e é provável que achemos mesmo algum tipo de dificuldade que essa pessoa tenha enfrentado, que comprova nossa tese! Nossa tese terá se transformado numa autêntica “self-fulfilling prophecy”! Em nome da ciência, é mais salutar, portanto, que formulemos com a maior precisão possível o que queremos dizer com “crise da meia idade” e então procuremos casos práticos que refutem essa tese, vindo a mantê-la apenas enquanto não seja contrariada. Esse é o método de Popper, que advogo.

Uma advertência final: estes comentários não têm a intenção de fazer uma crítica negativa ao artigo de Davis e Gould, profissionais altamente contributivos para a teoria da gestão. Apenas aproveito seu artigo para colocar algumas questões sobre a chamada “crise da meia idade” que merecem ser hoje melhor debatidas.

Referência:

Stanley M. Davis & Roger L. Gould – “Three Vice-Presidents in Mid-Life”, “Harvard Business Review”, edição de 1981. (Existe tradução para o português com o título: “A meia-idade como oportunidade de crescimento”, in “Coleção Harvard de Administração” no. 19, São Paulo, Editora Nova Cultural, 1986, pp. 25-55.